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Marilyn Crispell / Gerry Hemingway
Affinities
CD Intakt 2011

 

As afinidades a que se refere o título deste disco, respeitam à empatia pessoal-musical entre Marilyn Crispell e Gerry Hemingway, e assentam nos princípios estéticos que partilham desde que nos anos 80 fizeram parte do quarteto de Anthony Braxton.
Figura maior do free-jazz, Braxton é o grande responsável pela corrente do Jazz que se aproximou da música erudita, e a sua influência é reivindicada por uma infinidade de músicos contemporâneos. Mas convirá dizer que nem todos os músicos que reconhecem o ascendente de Anthony Braxton são interessantes, e muito do que se faz hoje nesta área é a meu ver pretensioso e rotineiro. Não é o caso, a meu ver também, dos dois músicos que fazem Affinities onde a ascendência de Braxton é evidente - como de outros -, mas ela nunca é realmente reverente.
Registado ao vivo em duas performances em Baltimore e Telaviv em 2009, Affinities parece surgir por vezes como uma espécie de profissão de fé no Jazz, na forma como se referem a vários autores, mesmo se Crispell e Hemingway se situam claramente fora do mainstream e se a forma como a eles se referem possui um cunho profundamente pessoal.
Curiosamente a referência que surge em primeiro lugar no disco, em “Shear Shift”, é a de Thelonious Monk, por diversas vezes citado ao longo dos seus 14 minutos. Percussivo e impetuoso, “Shear Shift” é desde logo o mais inspirado momento do disco, monkiano nos acordes angulosos e desconcertantes, numa verdadeira homenagem contemporânea. Segue-se “Axial Flows” onde Paul Bley que enuncia o tema parece submergido pelos Penguin Café Orchestra no momento mais desconcertante do disco, com Hemingway em vibrafone e bateria.
Percussivo como o tema de abertura, mas atonal e visceral, “Starlings” evoca a herança do piano de Cecil Taylor. Gerry Hemingway alterna entre o vibrafone e a bateria num magnífico e empático desempenho. A violência acentua-se no momento mais desinteressante do disco, “Threadings”, muito na linha do punk-jazz nórdico; mas “Air”, o única composição exterior ao duo, de Frank Kimbrough, repõe um pouco de lucidez: quietude e bucolismo, numa cálida interpretação do piano, onde o espectro Bley regressa, com a prestação da bateria a sugerir-me algumas interrogações.
Os harpejos do coração hispânico de Chick Corea parecem assomar em “Permeations”, com a bateria de novo sem saber muito bem o que fazer, e enfim remate para “Finis”, o momento mais abstracto do disco, com o Jazz a esvaecer, substituído por formas mais eruditas, algures entre Xenakis e Cage.
Enfim, um ou outro momento de desconcerto e alguma dispersão de referências, não escondem a consistência da procura que estes dois espíritos inquietos percorrem desde há décadas.

Marilyn Crispell (p)
Gerry Hemingway (bat, per, vib)

(Este texto foi publicado em Jazz 6/4 #16)